segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Crônica de Feira #1 - Das Feiras

Feira é um lugar de cores, cheiros, sabores. E lembranças. Transborda saudosismo nas tradições de um povo que encontra um gueto onde se perpetuar, nas antiguidades de família que se põe à venda por necessidade, no hábito comercial antiqüíssimo que remete às trocas e se alimenta das pechinchas.

Na Feira de São Cristóvão a gente acha bonito ter um lugar pra preservar a cultura nordestina, a cultura brasileira, a nossa cultura. A gente come aipim com carne de sol a preços módicos, dança forró como gringo no samba e ri das esculturas, das xilogravuras, das historietas da literatura de Cordel. Vamos à Feira de São Cristóvão e batemos no peito o orgulho de ser brasileiro, de nossas raízes nordestinas; dever cívico cumprido. Saindo dali, acima da Bahia é Paraíba, nordestino é porteiro ou pedreiro semi-analfabeto, Rio das Pedras um ponto em Jacarepaguá que só faz embaralhar o trânsito e programa cultural que acrescenta é o novo filme de Woody Allen no shopping com ar-condicionado e réplica da estátua da liberdade. O domingo na Feira foi uma incursão a um submundo cultural que deve ficar restrito àquela realidade. Lugar de forró, repentista, aipim e sotaque diferente é na “Feira dos Paraíbas”, no cercadinho azul em São Cristóvão que a Prefeitura gentilmente lhes cede em troca de um aluguel popular.

Na Feira da Praça XV a gente acha divertido a quantidade de quinquilharia à venda: tem boneca sem olho, sem braço, sem perna, até sem cabeça!; tem telefone vermelho, em forma de fruta, em forma de carro, em forma de qualquer propaganda imaginável, até que não funciona!; tem prataria, prato, jarra, taça de vinho, taça de água, talher de peixe, talher de sobremesa, até pra quem não come nada! Agora dá pra entender as placas de “Compra-se antiguidades”, mesmo que o que se venda seja apenas velho. Mais divertido é poder chegar a um preço junto com o vendedor. Porque na Feira da Praça XV muitas vezes valor não dita preço, então tanto faz se esse anel foi de toda a geração da família de alguém, se a foto desse broche é o único registro da avó morta desse senhor ou se essa senhora tinha muito apreço pela prataria francesa de sua mãe. No Brasil, quem faz o preço é a fome do vendedor. A Feira da Praça XV é chamada de Antiquário por alguns, mas são poucos ali os que têm apreço pelas antiguidades. Vendem-nas somente porque alguém as compra e assim se sustentam. É a oposição de quem vende por necessidade a quem compra por ostentação. Mais divertido é continuar andando pela Praça XV e chegar onde não tem mais barraca, onde o mostruário é colocado no chão mesmo, sobre um pano não raro imundo. É o lugar dos “sem-teto”, os que não têm 15 reais para dar ao organizador da Feira. Ali é muito engraçado, se vende qualquer coisa achada no lixo: um pé de sapato usado, 12 embalagens de xampu vazias, rádios de carros roubados. Essa não-Feira dá quase o dobro de tamanho da Feira Oficial, mas movimenta bem menos dinheiro. Ali estão os que não têm mais necessidade de nada, são barraquinhas de sucata e esmola.

Feira é um lugar em que as relações de confiança, por mais que estremecidas pelo comércio, ainda têm espaço. É um resquício de história, que não se curva à imponência dos shopping centers. As feiras persistem na cidade, nos bairros. A feira que tem perto da minha casa às quartas-feiras é mais do que um lugar onde se pode encontrar vegetais frescos ou frutas da estação a preços módicos. É onde a senhora solitária que mora a duas ruas da minha vai para ver passar as crianças da vizinhança, pra ver passar sua juventude, quando ela mesma ia roubar uns cachinhos de uva verde da barraquinha do seu Chico. É onde a minha mãe fica devendo oito reais porque esqueceu a carteira em casa e o camarão não pode ficar pra semana que vem, a dívida pode. É um local de encontro de todo o pessoal do bairro, dos que acordam cedo só pra comer um pastel com caldo de cana, com tempero de feira local.

As feiras se perpetuam pela necessidade de comércio, de dinheiro. Mas ainda sustentam relações informais de convívio e de fraternidade, apoiadas em um saudosismo de uma época que talvez nunca tenha sido, mas que a cada dia de feira permanece mais viva na lembrança dos freqüentadores.

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